O fotojornalismo tem uma obrigação: informar, estimular o debate e o senso crítico. No entanto, informar não significa atestar veracidade – isto vale para o texto, seja ele escrito ou falado e vale para a imagem. Só que no caso da imagem fotográfica, ela ganhou o peso de dar ao jornalismo o que a escrita e a fala não conseguiam — uma prova de algo aconteceu e ali está um atestado de sua veracidade. E é exatamente desta ideia que Roland Barthes em a A Câmara Clara. Para o autor, se algo está ali na foto aquilo aconteceu e é uma prova incontestável da verdade.

Essa linha seguida por Barthes ficou conhecida como “isto foi”.  “A essência da fotografia consiste em ratificar aquilo que ela representa”. Ou seja, é como se a fotografia fosse uma cópia autêntica do real, sem qualquer interferência seja do profissional ou do que está sendo retratado.

E esta ideia defendida por Barthes é muito perigosa quando se fala em fotografia de imprensa ou fotografia jornalística, já que desde que começou a ser incorporada pelos veículos de comunicação, a fotografia foi encarada como prova de que algo aconteceu como mostra o francês André Rouillé, no livro A fotografia – Entre documento e Arte Contemporânea. “Durante muito tempo, a ética da reportagem inspirou-se nos valores da cultura visual nascente. Após a cultura oral (o verdadeiro se narra), após a cultura escritural (o verdadeiro se lê), a cultura visual acreditou que o verdadeiro se via, que o visível podia ser garantia do verdadeiro. O nascimento da reportagem após a Grande Guerra, como observamos, coincide precisamente com o momento em que a informação passa do texto para fotografia, ou melhor, do texto sozinho para um misto de texto e de imagem, dominado pela fotografia.”

E essa fotografia, testemunha inquestionável do real, sem qualquer filtro, que reafirma a ideia de Barthes do “isto foi” é reconhecida por Rouillé como fotografia – documento que ele define como:[…] a fotografia–documento refere-se inteiramente a alguma coisa palpável, material, preexistente, a uma realidade desconhecida, em que se fixa com a finalidade de registrar as pistas e reproduzir fielmente a aparência. Essa metafísica da representação, que se baseia tanto nas capacidades analógicas do sistema ótico quanto na lógica de impressão do dispositivo químico, leva a uma ética da exatidão e a uma estética da transparência.

No entanto, ao se reconhecer que toda imagem é uma ficção, entenda que neste caso, não significa que ela seja falsa ou inventada, mas algo que já foi recortado de sua realidade pura e, além disso, já houve, naturalmente, outros elementos imputados a ela o que a deixam ainda mais distante como uma possibilidade de prova do real – a teoria de Barthes fica insustentável.  Para Boris Kossoy,  fotógrafo e professor da USP: “A imagem – mesmo a que é realizada como testemunho jornalístico – é inevitavelmente fruto de um processo de criação. As imagens são concebidas e materializadas conforme as intenções de seus autores, segundo um filtro cultural e uma determinada visão de mundo. Tal se percebe claramente ao longo da história da fotografia e da própria história da imprensa. O documento fotográfico, fragmentário por natureza, é o resultado final de elaboradas construções técnicas, estéticas e culturais desenvolvidas ao longo da produção da representação; daí se presta a olhares e usos ideológicos determinados.”

E, um destes elementos imputados na fotografia – e talvez um dos mais presentes na fotografia jornalística – é a ideologia, seja ela de quem a produziu ou de quem a veiculou e toda ideologia, além de descaracterizar a veracidade, ainda representa um grande risco para a mensagem informativa como alerta o autor francês François Soulages no livro A Estética da Fotografia – Perda e Permanência” (2010) ao dizer que “as fotos de tais reportagens não só praticamente inventam um mundo de sonhos, mas participam da produção de uma ideologia massificante e alienante que, como toda ideologia, se pretende portadora da verdade . Para Kossoy , os avanços tecnológicos potencializaram as possibilidades de se espalhar ideologia por meio das fotos já que estes avanços permitiram uma produção massiva de imagens e sua divulgação em meios de comunicação. No entanto, estas fotografias não seriam questionadas, pois elas contariam com o fato de estarem sendo veiculadas por meio de um produto informativo – de onde se espera uma fabricação da verdade.

“As diferentes ideologias, onde quer que atuem, sempre tiveram na imagem fotográfica um poderoso instrumento para veiculação das ideias e da consequente formação e manipulação da opinião pública […]. E tal manipulação tem sido possível justamente em função da mencionada credibilidade que as imagens têm junto à massa, para quem seus conteúdos são aceitos e assimilados como expressão da verdade.”

Uma maneira encontrada por Soulages para repensar o “isto foi” de Barthes é o “isto foi encenado”. A proposta é para que haja uma separação da fotografia – documento como prova do real e que se trabalhe com a ideia de que toda fotografia é vulnerável e pode ser alterada, carregando opinião, ideologia e não portando nenhuma garantia de que o fotografado seja ele um ser humano, uma paisagem ou qualquer objeto não tenha sido encenado, premeditado ou alterado. A forma mais prudente de receber uma fotografia seria questioná-la, não necessariamente duvidar do que ela retrata, mas analisar que alguém a pensou e a fez com algum objetivo.

“Na verdade, há sempre uma encenação do fotógrafo […]. Talvez, seja – poder-se ia dizer numa perspectiva humanista – a especificidade da encenação que manifesta o estilo do autor. Diante da foto de um anônimo, nunca podemos saber se essa foto é realmente de um anônimo espionado ou a de uma pessoa prevenida (que, portanto, representa): o ‘isto existiu’ é impossível de dizer porque o “isto foi encenado” foi pronunciado uma vez […] Todo fotógrafo é, por tanto, quer queira, quer não, um encenador, o Deus de um instante; Toda fotografia é teatralizante.

Ainda para Soulages, nenhuma modalidade fotográfica carrega a função de documento enquanto portador da verdade, nem a fotografia de reportagem, que já carrega uma opinião e uma condição ideológica embutida, nem a fotografia doméstica – em que o autor afirma ser “pura encenação” em que “fazemos o papel de pai ou de bom moço” e muito menos na fotografia publicitária – que se passa por real para vender uma ideia que não é real, mas o fato é que a fotografia por mostrar, que “está ali e uma imagem congelada”, é recebida como “isto foi” e muito pela necessidade do espectador acreditar de em uma prova:

“A doutrina do ‘isto existiu’ de Barthes parece mitológica. Talvez fosse necessário substituí-la por um ‘isto foi encenado’ que nos permitisse esclarecer melhor a natureza da fotografia. Diante de uma foto, só podemos dizer: isto foi encenado”, afirmando dessa maneira, que a cena foi encenada e representada diante da máquina do fotógrafo; que não é o reflexo nem a prova do real; o isto se deixou enganar: nós fomos enganados. Ao termos uma necessidade tão grande de acreditar, caímos na ilusão: a ilusão de que havia uma prova graças à fotografia.

O “isto foi encenado” proposto por Soulages  não prtende desmoralizar e diminuir a importância da fotografia seja ela para qualquer finalidade, mas reconhecer que ela é passível de edição e manipulação e, por isso, talvez seja coerente admitir que a fotografia como documento seja um conceito falido, o registro está documentado, é verdade, mas como qualquer documento, não é necessariamente verdadeiro. Reconhecer e entender isso abre a porta para discutir a fotografia em outro patamar, a fotografia como expressão, definida por Rouillé como “A uma fotografia-documento que compreende uma expressão, isto é, que engloba um acontecimento, nós chamaremos de “fotografia–expressão”. A fotografia–expressão “exprime o acontecimento, mas não o representa”

Em outras palavras, a fotografia não é somente uma representação como defendia Barthes, ela é uma linguagem que carrega sim um caráter documental, mas que como qualquer linguagem, mesmo sem ser adulterada, pode ter outras interpretações que não necessariamente vão se ater exclusivamente ao que está sendo representado, justamente pelo fato da imagem ter esse caráter polissêmico. Nas palavras de Kossoy  “a imagem fotográfica é antes de tudo uma representação a partir do real segundo o olhar e a ideologia do seu autor”. Ainda, segundo o autor: “A imagem fotográfica fornece provas, indícios, funciona sempre como documento iconográfico acerca de uma dada realidade. Trata-se de um testemunho que contém evidências sobre algo”.

Hippolyte-Bayard-Autoportrait-en-noyé-1840.jpg
Hippolyte Bayard simulou com um autorretrato seu suicídio o qual ficou conhecido como “Autoportrait en noyè”, em português “Autorretrato afogado”

 

Um comentário em “Fotografia: uma prova de que algo aconteceu?

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