Em algum ponto do segundo trimestre de 2017, começou o primeiro ano do resto de nossas vidas em termos de hábitos de consumo de informação.Dados da agência digital americana We Are Social mostram que 51,4% dos acessos à internet entre abril e junho se deram a partir de aparelhos celulares.
Antes do Natal deste ano, a fatia de usuários ligados à rede por telefones chegará a 2 bilhões de pessoas, num universo de 3,8 bilhões de internautas. Até um ano e meio atrás, a maioria navegava a partir de desktops ou laptops.
A virada começou a se desenhar em 2016, quando o celular desbancou os computadores de gabinete como dispositivo mais usado (o saldo da queda de braço foi de 50% a 45% das conexões à internet, os 5% restantes se dando via tablets ou videogames). Mas foi há cem dias que esse movimento de implicações imodestas se consolidou.
A primeira mudança decorrente dele, e talvez a mais contundente, será a estética. No campo das imagens, celular é sinônimo de enquadramento vertical, do que se convencionou chamar de modo retrato. Isso porque usuários de smartphones seguram seus aparelhos na posição vertical 94% do tempo.
Ocorre que a indústria do audiovisual opera até aqui segundo o paradigma da imagem horizontal (modo paisagem). Portanto, com o perdão do trocadilho, um reposicionamento forçado se avizinha.

PIONEIRO
O endosso do gigante YouTube ao formato vertical foi decisivo –a audiência diária acumulada dos vídeos é de 1 bilhão de horas, não custa lembrar–, mas não representou o passo pioneiro. Quem primeiro saiu em defesa da nova moldura foi Evan Spiegel, fundador e CEO do Snapchat.
Dois anos atrás, ele disse numa entrevista que o engajamento dos usuários dessa rede social em relação aos anúncios vistos (traduzido em total de curtidas, comentários e compartilhamentos) era nove vezes superior quando se tratava de vídeos verticais.
Vertical, afirmou ele à época, seria o equivalente à tela em branco do artista plástico, ou seja, encarnaria o enquadramento por excelência da criação, aquele em que ela se produziria da forma mais orgânica. A plataforma que Spiegel criou contabiliza hoje 10 bilhões de visualizações de vídeos por dia.
O entusiasmo não é compartilhado pela indústria do cinema e da TV, que sempre atuou no padrão horizontal. Mas começam a surgir festivais de filmes essencialmente verticais. Com duas edições (2014 e 2016), o australiano Vertical Film Festival (VFF) brinca com esse estranhamento. O site do evento define o formato como “orientação vertical”, “orientação retrato”, “tela alta” ou pura e simplesmente “hey, você está filmando do jeito errado”.
Errado ou não, o fato é que cada vez mais pessoas caem nas graças do método. Em 2021, segundo o estudo “The Zettabyte Era”, o tráfego de vídeos na internet responderá por 82% de toda a circulação de dados ali (em tamanho dos arquivos distribuídos, não em quantidade). Dessa fatia, 13% serão vídeos feitos ao vivo –”especialidade” de usuários não profissionais normalmente capturados em formato vertical.
A equação parece pronta: quanto mais vídeos forem vistos por dia e quanto mais difundido for o acesso à internet via celular, mais arquivos haverá em moldura vertical.
A NRK, rede estatal norueguesa, veiculou no fim de 2015 o que é tido como o primeiro documentário realizado na vertical. O projeto, “Bygda Som sa Nei” (a aldeia que disse não), trata da forma como uma minúscula cidade de 1.700 habitantes e localizada a 275 km da capital reage à instalação de um grupo de refugiados em um hotel até então abandonado.
O diretor do webfilme em curta-metragem, Kim Jansson, abre o texto de apresentação do projeto da seguinte forma: “Não faz muito tempo, ríamos das pessoas filmando verticalmente com seus celulares” –nada muito diferente da autoironia empregada pelos idealizadores do Vertical Film Festival ao falarem em um jeito errado de portar a câmera.
CELULAR PRIMEIRO
Então por que a equipe da NRK optou pelo formato impertinente? Ora, para atender ao imperativo “mobile first” (celular primeiro), à turma que se recusa a girar o celular e só o manuseia na vertical.
Antes de iniciar os trabalhos, a TV escandinava considerou três possibilidades: filmar com celulares, o que comprometeria a qualidade de som e de imagem do produto final, apesar de as câmeras deles capturarem com definição cada vez mais alta; gravar horizontalmente e depois cortar as tomadas para o formato vertical, o que também representaria perda de apuro; ou simplesmente rodar com a câmera tombada para uma proporção 9 (base):16 (altura) –não confundir com o 16:9 da TV de alta definição.
Os produtores optaram pela terceira opção, já que todos os comandos dos equipamentos são programados para o uso horizontal. Feita a escolha, uma geringonça de madeira e metal foi acoplada à câmera para deixar mais confortável a gravação, ou seja, para evitar que o(a) operador(a) tivesse de se contorcer para filmar.
Uma das conclusões é que, na tela vertical, “as pessoas ficam ótimas”, segundo escreveu Jansson em artigo sobre o projeto. “Conseguimos capturar mais do que o rosto dos entrevistados, fomos capazes de incluir sua linguagem corporal, sua gesticulação.”
Independentemente de questões técnicas, é forçoso reconhecer o que está por trás da nova cartilha de produção e exibição de imagens: um conceito renovado de plateia.
Este artigo é de autoria do jornalista e professor, Edson Rossi. O texto completo pode ser lido na Folha de S. Paulo.